segunda-feira, 4 de junho de 2012

Lampião: O dragão da maldade, mito, história do cangaço

LAMPIÃO: HERÓI OU BANDIDO?

1898 – Virgulino Ferreira da Silva nasce em 4 de junho, na comarca de Vila Bela, atual Serra Talhada, Pernambuco. É o terceiro dos nove filhos de José Ferreira e Maria Lopes.
 
Lampião: O dragão da maldade

Um guerreiro visionário, destemido e inteligente. Ninguém nega as virtudes de Lampião. Agora pesquisadores questionam o verdadeiro papel histórico de Virgulino Ferreira por Lira Neto.
cangaco_lampi_o_e_maria_bonitaEles faziam do assassinato um ritual macabro. O longo punhal, de até 80 centímetros de comprimento, era enfiado com um golpe certeiro na base da clavícula – a popular “saboneteira” – da vítima. A lâmina pontiaguda cortava a carne, seccionava artérias, perfurava o pulmão, trespassava o coração e, ao ser retirada, produzia um esguicho espetaculoso de sangue. Era um policial ou um delator a menos na caatinga – e um morto a mais na contabilidade do cangaço. Quando não matavam, faziam questão de ferir, de mutilar, de deixar cicatrizes visíveis, para que as marcas da violência servissem de exemplo. Desenhavam a faca feridas profundas em forma de cruz na testa de homens, desfiguravam o rosto de mulheres com ferro quente de marcar o gado.
Exatos 70 anos após a morte do principal líder do cangaço, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, a aura de heroísmo que durante algum tempo tentou-se atribuir aos cangaceiros cede terreno para uma interpretação menos idealizada do fenômeno. Uma série de livros, teses e dissertações acadêmicas lançados nos últimos anos defende que não faz sentido cultuar o mito de um Lampião idealista, um revolucionário primitivo, insurgente contra a opressão do latifúndio e a injustiça do sertão nordestino. Virgulino não seria um justiceiro romântico, um Robin Hood da caatinga, mas um criminoso cruel e sanguinário, aliado de coronéis e grandes proprietários de terra. Historiadores, antropólogos e cientistas sociais contemporâneos chegam à conclusão nada confortável para a memória do cangaço: no Brasil rural da primeira metade do século 20, a ação de bandos como o de Lampião desempenhou um papel equivalente ao dos traficantes de drogas que hoje seqüestram, matam e corrompem nas grandes metrópoles do país.
Cangaceiros e traficantes
Foram os cangaceiros que introduziram o seqüestro em larga escala no Brasil. Faziam reféns em troca de dinheiro para financiar novos crimes. Caso não recebessem o resgate, torturavam e matavam as vítimas, a tiro ou punhaladas. A extorsão era outra fonte de renda. Mandavam cartas, nas quais exigiam quantias astronômicas para não invadir cidades, atear fogo em casas e derramar sangue inocente. Ofereciam salvo-condutos, com os quais garantiam proteção a quem lhes desse abrigo e cobertura, os chamados coiteiros. Sempre foram implacáveis com quem atravessava seu caminho: estupravam, castravam, aterrorizavam. Corrompiam oficiais militares e autoridades civis, de quem recebiam armas e munição. Um arsenal bélico sempre mais moderno e com maior poder de fogo que aquele utilizado pelas tropas que os combatiam.
“A violência é mais perversa e explícita onde está o maior contingente de população pobre e excluída. Antes o banditismo se dava no campo; hoje o crime organizado é mais evidente na periferia dos centros urbanos”, afirma a antropóloga Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora do livro A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão. A professora aponta semelhanças entre os métodos dos cangaceiros e dos traficantes: “A maioria dos moradores das favelas de hoje não é composta por marginais. No sertão, os cangaceiros também eram minoria. Mas, nos dois casos, a população honesta e trabalhadora se vê submetida ao regime de terror imposto pelos bandidos, que ditam as regras e vivem à custa do medo coletivo”.
Além do medo, os cangaceiros exerciam fascínio entre os sertanejos. Entrar para o cangaço representava, para um jovem da caatinga, ascensão social. Significava o ingresso em uma comunidade de homens que se gabavam de sua audácia e coragem, indivíduos que trocavam a modorra da vida camponesa por um cotidiano repleto de aventuras e perigos. Era uma via de acesso ao dinheiro rápido e sujo de sangue, conquistado a ferro e a fogo. “São evidentes as correlações de procedimentos entre cangaceiros de ontem e traficantes de hoje. A rigor, são velhos professores e modernos discípulos”, afirma o pesquisador do tema Melquíades Pinto Paiva, autor de Ecologia do Cangaço e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Homem e lenda
Virgulino Ferreira da Silva reinou na caatinga entre 1920 e 1938. A origem do cangaço, porém, perde-se no tempo. Muito antes dele, desde o século 18, já existiam bandos armados agindo no sertão, particularmente na área onde vingou o ciclo do gado no Nordeste, território onde campeava a violência, a lei dos coronéis, a miséria e a seca. A palavra cangaço, segundo a maioria dos autores, derivou de “canga”, peça de madeira colocada sobre o pescoço dos bois de carga. Assim como o gado, os bandoleiros carregavam os pertences nos ombros.
Um dos precursores do cangaço foi o lendário José Gomes, o endiabrado Cabeleira, que aterrorizou as terras pernambucanas por volta de 1775. Outro que marcou época foi o potiguar Jesuíno Alves de Melo Calado, o Jesuíno Brilhante (1844-1879), famoso por distribuir entre os pobres os alimentos que saqueava dos comboios do governo. Mas o primeiro a merecer o título de Rei do Cangaço, pela ousadia de suas ações, foi o pernambucano Antônio Silvino (1875-1944), o Rifle de Ouro. Entre suas façanhas, arrancou os trilhos, perseguiu engenheiros e seqüestrou funcionários da Great Western, empresa inglesa que construía ferrovias no interior da Paraíba.
Lampião sempre afirmou que entrou na vida de bandido para vingar o assassinato do pai. José Ferreira, condutor de animais de carga e pequeno fazendeiro em Serra Talhada (PE), foi morto em 1920 pelo sargento de polícia José Lucena, após uma série de hostilidades entre a família Ferreira e o vizinho José Saturnino. No sertão daquele tempo, a vingança e a honra ofendida caminhavam lado a lado. Fazer justiça com as próprias mãos era considerado legítimo e a ausência de vingança era entendida como sintoma de frouxidão moral. “Na minha terra,/ o cangaceiro é leal e valente:/ jura que vai matar e mata”, diz o poema “Terra Bárbara”, do cearense Jáder de Carvalho (1901-1985).
No mesmo ano de 1920, Virgulino Ferreira entrou para o grupo de outro cangaceiro célebre, Sebastião Pereira e Silva, o Sinhô Pereira – segundo alguns autores, quem o apelidou de Lampião. Como tudo na biografia do pernambucano, é controverso o motivo do codinome. Há quem diga que o batismo se deveu ao fato de ele manejar o rifle com tanta rapidez e destreza que os tiros sucessivos iluminavam a noite. O olho direito, cego por decorrência de um glaucoma, agravado por um acidente com um espinho da caatinga, não lhe prejudicou a pontaria. Outros acreditam na versão atribuída a Sinhô Pereira, segundo a qual Virgulino teria usado o clarão de um disparo para encontrar um cigarro que um colega havia deixado cair no chão.
O cangaço não tinha um líder de destaque desde 1914, quando Antônio Silvino foi preso após um combate com a polícia. Só a partir de 1922, após assumir o bando de Sinhô Pereira, Virgulino se tornaria o líder máximo dos cangaceiros. Exímio estrategista, Lampião distinguiu-se pela valentia nas pelejas com a polícia, como em 1927, em Riacho de Sangue, durante um embate com os homens liderados pelo major cearense Moisés Figueiredo. Os 50 homens de Lampião foram cercados por 400 policiais. O tiroteio corria solto e a vitória da polícia era iminente. Lampião ordenou o cessar-fogo e o silêncio sepulcral de seu bando. A polícia caiu na armadilha. Avançou e, ao chegar perto, foi recebida com fogo cerrado. Surpreendidos, os soldados bateram em retirada.
A capacidade de despistar os perseguidores lhe valeu a fama de possuir poderes sobrenaturais e, após escapar de inúmeras emboscadas, de ter o corpo fechado. No mesmo mês da tocaia de Riacho de Sangue, Lampião e seu bando caíram em nova emboscada. Um traidor ofereceu-lhes um jantar envenenado, numa casa cercada por policiais. Quando os primeiros cangaceiros começaram a passar mal, Virgulino se deu conta da tramóia e tentou fugir, mas viu-se acuado por um incêndio proposital na mata. O que era para ser uma arapuca terminou por salvar a pele dos cangaceiros: desapareceram na fumaça, como por encanto.
Mas o maior trunfo de Lampião foi o de cultivar uma grande rede de coiteiros. Isso garantiu a longevidade de sua carreira e a extensão de seu domínio. A atuação de seu bando estendeu-se por Alagoas, Ceará, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe. Lampião chegou a comandar um exército nômade de mais de 100 homens, quase sempre distribuídos em subgrupos, o que dava mobilidade e dificultava a ação da polícia. Em 1926, em tom de desafio e zombaria, chegou a enviar uma carta ao governador de Pernambuco, Júlio de Melo, propondo a divisão do estado em duas partes. Júlio de Melo que se contentasse com uma. Lampião, autoproclamado “Governador do Sertão”, mandaria na outra.
Há divergências – e discussões apaixonadas – em torno da figura histórica de Virgulino. Ele comandava sessões de estupro coletivo ou, ao contrário, punia indivíduos do bando que violentavam mulheres? Castrava inimigos, como faziam outros tantos envolvidos no cangaço? Há controvérsias. “Lampião não era um demônio nem um herói. Era um cangaceiro. Muitas das crueldades imputadas a ele foram praticadas por indivíduos de outros bandos. Entrevistei vários ex-cangaceiros e nenhum me confirmou histórias a respeito de estupros e castrações executadas pessoalmente por Lampião”, diz o pesquisador Amaury Corrêa de Araújo, autor de sete livros sobre o cangaço.
As narrativas de velhos cangaceiros contrapõem-se à versão publicada pelos jornais da época, que geralmente tinham a polícia como principal fonte. Com tantas histórias e estórias a cercar a figura de Lampião, torna-se difícil separar o homem da lenda. “Acho que está justamente aí, nessa multiplicidade de olhares e versões, a grande força do personagem que ele foi. É isso que nos ajuda inclusive a entender sua dimensão como mito”, explica a historiadora francesa Élise Grunspan-Jasmin, autora de Lampião: Senhor do Sertão (Edusp).
“Lampião VP”
Um livro recentemente lançado na França promete aumentar a temperatura dessa discussão. Assinado pelo escritor Jack de Witte, Lampião VP, ainda sem editora no Brasil, compara a trajetória do Rei do Cangaço com a do traficante carioca Marcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP, protagonista do livro-reportagem Abusado, best-seller do jornalista Caco Barcelos. “O que produz a violência das favelas? A miséria, a injustiça social, a polícia e os políticos corruptos. As mesmas causas produzem os mesmos efeitos”, diz De Witte. O historiador e professor titular da Unicamp Jayme Pinsky adverte: “É um tanto simplista comparar cangaceiros e traficantes. Corre-se o risco de cometer o pecado historiográfico do anacronismo”. Leia-se: analisar um momento histórico com base em conceitos e idéias de outro.
Já foi moeda corrente entre os especialistas interpretar o “Rei do Cangaço” como um “bandido social”, expressão criada pelo historiador inglês Eric Hobsbawm para definir os fora-da-lei que surgiam nas sociedades agrárias em transição para o capitalismo. Em Bandidos (Forense Universitário), de 1975, Hobsbawn cita Lampião, Robin Hood e Jesse James como exemplos de nobres salteadores, vingadores ousados, defensores dos oprimidos.
A imagem revolucionária começou a se desenhar em 1935, quando a Aliança Nacional Libertadora citou Virgulino como um de seus inspiradores políticos. A tese foi reforçada em 1963 com o lançamento de um clássico sobre o tema, Cangaceiros e Fanáticos, no qual o autor, Rui Facó, justifica a violência física do cangaço como uma resposta à violência social. Na mesma época, o deputado federal Francisco Julião, representante das Ligas Camponesas e militante político pela reforma agrária, declarava que Lampião era “o primeiro homem do Nordeste a batalhar contra o latifúndio e a arbitrariedade”.
“Lampião não era um revolucionário. Sua vontade não era agir sobre o mundo para lhe impor mais justiça, mas usar o mundo em seu proveito”, afirma a também a historiadora Grunspan-Jasmin, fazendo coro a um dos maiores especialistas do cangaço da atualidade, Frederico Pernambucano de Mello. Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e autor de Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste Brasileiro, Mello diz que o cangaceiro e o coronel não eram rivais. Os coronéis ofereciam armas e proteção aos cangaceiros, que, em troca, forneciam serviço de milícia. Dois dos maiores coiteiros de Lampião foram homens poderosos: o coronel baiano Petronilo de Alcântara Reis e o capitão do Exército Eronildes de Carvalho, que viria a ser governador de Alagoas. “Aprecio de preferência as classes conservadoras: agricultores, fazendeiros, comerciantes”, disse Virgulino em uma entrevista de 1926.
Marqueteiro da caatinga
A idéia de que Lampião fosse um vingador também é contestada por Mello. Ele argumenta que, em quase 20 anos de cangaço, Lampião nunca teria se esforçado para se vingar de Lucena e Saturnino, o policial e o antigo vizinho responsáveis pelo assassinato de seu pai. De acordo com um dos homens de Virgulino, Miguel Feitosa, o Medalha, Saturnino chegara a mandar um uniforme e um corte de tecido com o objetivo de selar a paz entre eles. Um portador teria agradecido por Lampião. O mesmo Medalha dizia que o ex-soldado Pedro Barbosa da Cruz propôs matar Lucena por dinheiro. “Deixe disso, essas são questões velhas”, teria respondido Lampião. Segundo o autor de Guerreiros do Sol, os cangaceiros usavam o discurso de vinganças pessoais e gestos de caridade como “escudos éticos” para os atos de banditismo.
Apesar da vida árdua, quem entrava no cangaço dificilmente conseguia (ou queria) sair dele. Havia um notório orgulho de pertencer aos bandos, revelado também na indumentária dos cangaceiros. O excesso de adereços, os enfeites nos chapéus, os bordados coloridos foram típicos dos momentos finais do cangaço. Lampião era um homem bem preocupado com sua imagem pública, o que colaborou para que permanecesse na memória nacional. O Rei do Cangaço também era o rei do marketing pessoal. Assim como adorava aparecer em jornais e revistas, deixando-se inclusive fotografar e até filmar, fazia de seu traje de guerreiro uma ostensiva e vaidosa marca registrada. “Nisso, talvez apenas o cavaleiro medieval europeu ou o samurai oriental possa rivalizar com o nosso capitão do cangaço”, escreveu Pernambucano de Mello.
A antropóloga Luitgarde Barros enxerga aí um outro ponto em comum com a bandidagem atual: “Os traficantes também gostam de ostentar sua condição de bandidos e possuem um código visual característico, composto por capuzes e tatuagens de caveiras espalhadas pelo corpo”. A violência policial é outro aspecto que aproxima o universo de Lampião do mundo do tráfico. Como ocorre hoje nas favelas dominadas pelo crime organizado, a truculência dos bandoleiros sertanejos só encontrava equivalência na brutalidade das volantes – as forças policiais cujos soldados eram apelidados pelos cangaceiros de “macacos”. Nos tempos áureos do cangaço, não havia grandes diferenças entre a ação de bandidos e soldados. Não raro, eles se trajavam do mesmo modo – o que chegava a provocar confusões – e uns se bandeavam para o lado dos outros. Cangaceiros como Clementino José Furtado, o Quelé, abandonaram o grupo e foram cerrar fileiras em meio às volantes. O bandido Mormaço fez o movimento contrário. Havia sido corneteiro da polícia antes de aderir a Lampião.
Como é comum à história da maioria dos criminosos, uma morte trágica e violenta marcou o fim dos dias de Virgulino. Traído por um de seus coiteiros de confiança, Pedro de Cândida, que foi torturado pela polícia para denunciar o paradeiro do bando, Lampião acabou surpreendido em seu esconderijo na Grota do Angico, Sergipe, em 28 de julho de 1938. Depois de uma batalha de apenas 15 minutos contra as tropas do tenente José Bezerra, 11 cangaceiros tombaram no campo de batalha. Todos eles tiveram os corpos degolados pela polícia, inclusive Lampião e Maria Bonita. Durante mais de 30 anos, as cabeças dos dois permaneceram insepultas. Em 1969, elas ainda estavam no museu Nina Rodrigues, na Bahia, quando foram finalmente enterradas, a pedido de familiares do casal mais mitológico – e temido – do cangaço.

A saga de Lampião na caatinga

1898 – Virgulino Ferreira da Silva nasce em 4 de junho, na comarca de Vila Bela, atual Serra Talhada, Pernambuco. É o terceiro dos nove filhos de José Ferreira e Maria Lopes.
1915 – Começa a briga entre a família Ferreira e a do vizinho José Saturnino.
1920 – José Ferreira é morto. Virgulino e três irmãos (Ezequiel, Levino e Antônio) entram para o cangaço. Durante um tiroteio em Piancó (PB), ele é ferido no ombro e na virilha: são as primeiras cicatrizes de uma série que colecionará na vida.
1922 – Sinhô Pereira abandona o cangaço e Lampião assume o lugar do chefe. A primeira grande façanha é um assalto à casa da baronesa Joana Vieira de Siqueira Torres, em Alagoas.
1924 – Toma um tiro no pé direito, em Serra do Catolé, município de Belmonte (PE).
1925 – Fica cego do olho direito e passa a usar óculos para disfarçar o problema.
1926 – Visita Padre Cícero no Ceará e recebe a patente de capitão do “batalhão patriótico”, encarregado de combater a Coluna Prestes. Em Itacuruba (PE) é ferido à bala na omoplata.
1927 – Ataque do bando a Mossoró (RN). A cidade resiste. É uma das maiores derrotas de sua carreira.
1928 – A ação da polícia de Pernambuco faz com que atravesse o rio São Francisco e passe a agir preferencialmente na Bahia e em Sergipe.
1929 – Primeiro encontro com Maria Bonita, na fazenda do pai dela, em Malhada do Caiçara (BA).
1930 – Maria Bonita torna-se sua mulher e ingressa no bando. O governo da Bahia oferece uma recompensa de 50 contos de réis para quem o entregar vivo ou morto. Em Sergipe, é baleado no quadril.
1932 – Nasce Expedita, sua filha com Maria Bonita.
1934 – Eronildes Carvalho, capitão do Exército e coiteiro de Lampião, é nomeado governador de Sergipe.
1936 – O libanês Benjamin Abraão, ex-secretário de Padre Cícero, convence Virgulino a se deixar filmar no documentário Lampeão. O filme é recolhido pelo Estado Novo.
1938 – Em 28 de julho, o bando é cercado em Angico (SE). Lampião, Maria Bonita e nove cangaceiros são assassinados.

Artimanhas do cangaço
As estratégias e técnicas para despistar os inimigos
Embora seja inadequado referir-se aos cangaceiros como guerrilheiros – eles não tinham nenhum propósito político –, é inegável que lançaram mão de táticas típicas da guerrilha. Habituados a viver na caatinga, não eram presa fácil para a polícia, especialmente para as unidades deslocadas das cidades com a missão de combatê-los no sertão. Uma das maiores dificuldades de enfrentá-los era a de que preferiam ataques rápidos e ferozes, que surpreendiam o adversário. Também não tinham qualquer cerimônia em fugir quando se viam acuados. Houve quem confundisse isso com covardia. Era estratégia cangaceira.
Tropa de elite
Os bandos eram sempre pequenos, de no máximo 10 a 15 homens. Isso garantia a mobilidade necessária para a realização de ataques-surpresa e para bater em retirada em situações de perigo.
Calada da noite
Em vez de se deslocar a cavalo por estradas e trilhas conhecidas da polícia, percorriam longas distâncias a pé em meio à caatinga, de preferência à noite. Para evitar que novas vias de acesso ao sertão fossem abertas, assassinavam trabalhadores nas obras de rodovias e ferrovias.

Os apetrechos
Todos os pertences do cangaceiro eram levados pendurados pelo corpo. Como não se podia carregar muita bagagem, dinheiro e comida eram colocados em potes enterrados no chão, para serem recuperados mais tarde.
Raposas do deserto
Cangaceiros eram mestres em esconder rastros. Alguns truques: usar as sandálias ao contrário nos pés. Pelas pegadas, a polícia achava que eles iam na direção contrária (detalhe); andar em fila indiana, de costas, pisando sobre as mesmas pegadas, apagadas com folhagens; pular sobre um lajedo, dando a impressão de sumir no ar.
Peso morto
Com exceção de seqüestrados, quase nunca faziam prisioneiros em combate, pois isso dificultaria a capacidade de se mover com rapidez. Também não mantinham colegas feridos ou com dificuldade de locomoção.
Seu mestre mandou
Para resolver discórdias internas no bando, Lampião sempre planejava um grande ataque. Todos os membros do grupo se uniam contra o inimigo e deixavam de lado as divergências entre si.
Os infiltrados
Quem dava abrigo e esconderijo aos cangaceiros era chamado de coiteiro e agia em troca de dinheiro, de proteção armada ou mesmo por medo. Coiteiros que traíam a confiança eram mortos para servirem de exemplo.
Rota de fuga
As principais áreas de ação do cangaço eram próximas às fronteiras estaduais. Em caso de perseguição, eles podiam cruzá-las para ficar a salvo do ataque da polícia local.
Fogo amigo e inimigo
Durante os combates, havia uma regra fundamental: em caso de retirada, nunca deixar armas para o inimigo; nas vitórias, apoderar-se do arsenal dele.
Deus e diabo na terra do sol
A noite em que Padre Cícero conversou com Lampião
Ali estavam, frente a frente, pela primeira e única vez, Lampião e Padre Cícero, os dois maiores mitos de toda a história nordestina. Uma terceira figura mitológica era indiretamente responsável por aquele encontro inusitado: Luís Carlos Prestes, o comandante da Coluna Prestes, movimento militar guerrilheiro que desde o ano anterior serpenteava pelo interior do país, enfrentando as tropas do presidente Artur Bernardes. Quando a marcha da coluna revolucionária rumou para o Nordeste, o governo federal não teve dúvidas: convocou os chefes políticos locais para formarem exércitos próprios e combater os rebeldes. No livro O General Góes Depõe, da década de 1950, o próprio general Góes Monteiro, chefe do Estado-Maior das operações contra a Coluna, assume que partiu dele a idéia de convocar jagunços e cangaceiros para fazer frente ao avanço de Prestes. No Ceará, coube ao deputado Floro Bartolomeu, médico e aliado político do Padre Cícero, fazer o convite oficial ao bando de Lampião para se engajar no “Batalhão Patriótico”. Em fevereiro de 1926, Padre Cícero ainda tentou uma solução pacífica. Enviou aos revolucionários uma carta em que os incitava a depor armas. Em troca, prometia-lhes abrigo em Juazeiro do Norte (CE), onde teriam garantias legais de que seriam submetidos a um tratamento justo. De acordo com o relato de Lourenço Moreira Lima, secretário da Coluna revolucionária, a mensagem foi recebida. “Tivemos a oportunidade de ler essa carta, escrita com uma grande ingenuidade, mas da qual ressaltava o desejo íntimo e sincero do padre no sentido de conseguir fazer a paz”, escreveu Moreira Lima em seu diário de campanha, publicado em 1934. O pedido, como se sabe, foi ignorado. Quando Lampião chegou no dia 4 de março à cidade de Juazeiro do Norte, atendendo ao chamado de Floro, este não se encontrava mais por lá. Doente, o deputado federal viajara para o Rio de Janeiro, onde acabaria morrendo. Padre Cícero se viu então com um problema nas mãos: recepcionar o famoso bandido e seus cabras na cidade e, mais ainda, cumprir o que havia sido combinado entre Lampião e o deputado, com a devida aprovação do governo federal: o cangaceiro deveria receber dinheiro, armas e a patente de capitão do “Batalhão Patriótico”. Lampião e outros 49 cangaceiros ocuparam uma casa próxima à fazenda de Floro, nas imediações da cidade, e, em seguida, alojaram-se em Juazeiro do Norte, no sobrado onde residia João Mendes de Oliveira, conhecido poeta popular da região. Foi lá que, da janela, Virgulino atirou moedas ao povo e onde, durante a madrugada, Padre Cícero encontrou o bando. Os bandidos, ajoelhados em deferência ao sacerdote, teriam ouvido o padre tentar convencer seu líder a largar o cangaço logo após voltasse da campanha contra Prestes. Mandou-se então chamar o único funcionário federal disponível na cidade, o agrônomo Pedro de Albuquerque Uchoa, para redigir um documento que, supostamente, garantiria salvo-conduto ao bando pelos sertões e, principalmente, concedia a prometida patente. O papel, como Lampião viria a descobrir tão logo saiu da cidade, não tinha qualquer valor legal, o que não o impediu de assinar, daí por diante, “Capitão Virgulino”. Ciente da desfeita, o cangaceiro não se preocupou mais em dar combate à Coluna Prestes. Já obtivera dinheiro e armas em número suficiente para seguir seu caminho de bandoleiro, agora ostentando orgulhoso a falsa patente militar. Mais tarde, o agrônomo Uchoa justificou seu papel no episódio: diante de Lampião, assinaria qualquer coisa. “Até a destituição do presidente da República”, disse.
Bonnie e Clyde do sertão
O amor de Maria Bonita e Lampião provocou uma revolução no cotidiano dos cangaceiros
Uma sertaneja amoleceu o coração de pedra do Rei do Cangaço. Foi Maria Gomes de Oliveira, a Maria Déa, também conhecida como Maria Bonita. Separada do antigo marido, o sapateiro José Miguel da Silva, o Zé de Neném, foi a primeira mulher a entrar no cangaço. Antes dela, outros bandoleiros chegaram a ter mulher e filhos, mas nenhuma esposa até então havia ousado seguir o companheiro na vida errante no meio da caatinga. O primeiro encontro entre os dois foi em 1929, em Malhada de Caiçara (BA), na casa dos pais de Maria, então com 17 anos e sobrinha de um coiteiro de Virgulino. No ano seguinte, a moça largou a família e aderiu ao cangaço, para viver ao lado do homem amado. Quando soube da notícia, o velho mestre de Lampião, Sinhô Pereira, estranhou. Ele nunca permitira a presença de mulheres no bando. Imaginava que elas só trariam a discórdia e o ciúme entre seus “cabras”. Mas, depois da chegada de Maria Déa, em 1930, muitos outros cangaceiros seguiram o exemplo do chefe. Mulher cangaceira não cozinhava, não lavava roupa e, como ninguém no cangaço possuía casa, também não tinha outras obrigações domésticas. No acampamento, cozinhar e lavar era tarefa reservada aos homens. Elas também só faziam amor, não faziam a guerra: à exceção de Sila, mulher do cangaceiro Zé Sereno, não participavam dos combates – e com Maria Bonita não foi diferente. O papel que lhes cabia era o de fazer companhia a seus homens. Os filhos que iam nascendo eram entregues para ser criados por coiteiros. Lampião e Maria tiveram uma filha, Expedita, nascida em 1932. Dois anos antes, aquele que seria o primogênito do casal nascera morto, em 1930. Entre os casais, a infidelidade era punida dentro da noção de honra da caatinga: o cangaceiro Zé Baiano matou a mulher, Lídia, a golpes de cacete, quando descobriu que ela o traíra com o colega Bem-Te-Vi. Outro companheiro de bando, Moita Brava, pegou a companheira Lili em amores com o cabra Pó Corante. Assassinou-a com seis tiros à queima-roupa. A chegada das mulheres coincidiu com o período de decadência do cangaço. Desde que passou a ter Maria Bonita a seu lado, Lampião alterou a vida de eterno nômade por momentos cada vez mais alongados de repouso, especialmente em Sergipe. A influência de Maria Déa sobre o cangaceiro era visível. “Lampião mostrava-se bem mudado. Sua agressividade se diluía nos braços de Maria Déa”, afirma o pesquisador Pernambucano de Mello. Foi em um desses momentos de pausa e idílio no sertão sergipano que o Rei do Cangaço acabou sendo surpreendido e morto, na Grota do Angico, em 1938, depois da batalha contra as tropas do tenente José Bezerra. Conta-se que, quando lhe deceparam a cabeça, a mais célebre de todas as cangaceiras estava ferida, mas ainda viva.
Saiba mais
LIVROS
Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste Brasileiro, Frederico Pernambucano de Mello, Massangana/Girafa, 2004
Um dos melhores estudos sobre cangaço, desmitifica a idéia de Lampião como um “bandido social”.
Lampião: Senhor do Sertão, Élise Grunspan-Jasmin, Edusp, 2006
Compara as várias versões a respeito da vida de Virgulino Ferreira e analisa a permanência do mito Lampião.
A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão, Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, Mauad, 2007
Analisa a violência que cercou o cangaço e Lampião.
Lampião: O Rei dos Cangaceiros, Billy Jaynes Chandler, Paz e Terra, 2003
Biografia de Virgulino Ferreira, baseada em jornais da época.
FONTE: AVENTURAS NA HISTÓRIA
CINEMA E CANGAÇO NA TERRA DO SOL. (CLIQUE AQUI)

Lampião, Virgulino e o mito

70 anos do fim do Cangaço

Karolina Gomes, Monika Hackmayer e Virginia Primo A parceria inabalável de Lampião e Maria Bonita
a madrugada de 28 de julho de 1938, um grupo da polícia liderado pelo tenente João Bezerra, surpreendeu Lampião e seu bando na fazenda Angico, em Sergipe, onde estavam assentados. O Rei do Cangaço
Lampião, sua esposa Maria Bonita e outros 10 cangaceiros foram degolados e tiveram suas cabeças expostas como troféu nas escadarias da Igreja de Santana do Ipanema. Setenta anos depois, a data é lembrada como o marco do fim do Cangaço e o início de sua consagração como um mito.
Tido por muitos como um justiceiro social e por outros como um bandido que matava a sangue frio,
Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, foi o cangaceiro que mais acendeu a imaginação popular.
Uma das lendas que explica seu apelido diz que ao se apresentar ao bando de cangaceiros, aos 17 anos,
Virgulino usou um truque que transformava um fuzil em metralhadora. A mágica consistia em amarrar
ao mesmo tempo um lenço no cotovelo e na peça do disparador, de modo que quando acionasse o gatilho,
o fuzil se armasse. Até hoje no Nordeste esse feito é conhecido como o “pulo do Lampião”.
“Minha mãe me dê dinheiro/ Pra comprar um cinturão/ Pra viver melhor no mundo/ É andar mais
Lampião”. Esses versos, cantados pela população sertaneja da época, representavam a visão popular que
tinha o cangaceiro como uma alternativa ao vazio de poder deixado pelo Estado.
O próprio Virgulino afirmava não confiar na ação da justiça pública, razão pela qual decidiu entrar para o movimento, em 1916. O sertanejo pretendia vingar o assassinato de seu pai, morto em uma busca policial: “Não perdi tempo e resolutamente arrumei-me e enfrentei a luta”, afirmou em entrevista histórica concedida na época ao jornalista Octacílio Macedo.
Vera Ferreira, neta do cangaceiro, complementa:
“Muita gente desconhece os motivos que o levaram (Lampião) a entrar no cangaço, preferindo julgar sem conhecimento, pois é mais fácil julgar pelo que ouviu a buscar conhecer a história.”
A idéia de que Lampião teria sido um Robin Hood sertanejo, que tirava dos ricos para dar aos pobres,
é contestada por muitos, pois a revolução social que Virgulino aparentava defender, estava conivente com a própria elite agrária, que precisava dos bandos e de sua “valentia” para estabelecer a ordem social na então República Velha.
Segundo Carlos Rostand de Medeiros, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Virgulino agia como um guerrilheiro popular sem causa:
“Na verdade, se Lampião tinha alguma causa, no início era a vingança, mas depois foi apenas a ganância por dinheiro e poder”, afirma Rostand, bisneto do falecido coronel Quincó da Rajada.
O pesquisador, que visitou diversas cidades nordestinas onde se estabeleceram grupos de cangaceiros,
confirmou que a morte de Lampião e de Maria Bonita 16 Julho / Dezembro 2007
“O cangaceiro é um personagem que se enraíza na história, mas que consegue se descolar dela. Por isso se transformou em um mito”
Hernani Heffner
deixou seus companheiros sem orientação de como seguir adiante, marcando a morte do Cangaço na sua forma tradicional. Segundo ele, muito se publicou após a morte do Rei do Cangaço: “a esquerda puxou
Lampião para a idéia de contestação do poder público, tornando sua figura apreciada entre os intelectuais”.
Mas sua figura não foi só apreciada por intelectuais e marxistas. Embora Lampião e o bando tivessem tido as cabeças cortadas na emboscada em Sergipe, “suas ações criaram fortes raízes no imaginário do povo que, carente de heróis, ergueu, com dinheiro público, uma estátua para ele, em uma colina de Serra Talhada”, acrescentou Evandro Domingues, professor e colecionador de material sobre o Cangaço.
Até os próprios coronéis necessitaram da apreciação popular das ações de Lampião para justificar a impunidade dos cangaceiros, conforme explica o jornalista e escritor, Júlio José Chiavenato, no livro
Cangaço – A força do coronel.
Como explicar a vitória de um pequeno bando sobre a polícia de oito estados se não pelos “superpoderes”
dos cangaceiros? Ou seja, a própria polícia, muitas vezes subornada pelo movimento, supervalorizava
a “valentia” cangaceira para encobrir sua deficiência.
“Não é muito diferente do que vemos nas favelas
brasileiras atualmente...”, comentou o colecionador Evandro Domingues.
A permanência na atualidade de um poder paralelo, da corrupção policial e da conivência popular
com a criminalidade têm origem na herança do coronelismo e do Cangaço, afirma também o pesquisador
Rostand de Medeiros. Para ele, o que estava em jogo era o interesse econômico: “Sua organização era
baseada no dinheiro, na propina dada aos policiais e autoridades que lhe forneciam armas. No Rio de Janeiro, traficante não dura muito, por que então Lampião viveu 18 anos no Cangaço? Serão apenas suas
habilidades guerreiras? Sua invencibilidade? Corpo fechado? Nada disso, apenas grana”, pontuou.
Terra sem lei
A grande seca de 1877 é o pano de fundo para o surgimento do Cangaço. A seca arrasou o Nordeste,
criou uma massa de flagelados, além de tumultos em várias regiões: vilas eram invadidas e os saques
eram freqüentes. O banditismo se revelou uma revolta espontânea contra a situação social. Assaltos a
fazendas, seqüestros e grandes roubos a comboios e armazéns faziam parte deste cenário.
Nesse sertão desestruturado, vários coronéis perderam o poder. No sul do Ceará, no Vale do Cariri, em
1901, os coronéis usaram pela primeira vez, de modo organizado, bandos de sertanejos para impor a “ordem social”. Dos retirantes que se refugiaram no Vale do Cariri, em busca da proteção do Padre Cícero surgem grupos rebeldes que, além de agir sob a vontade dos coronéis, partiam para o crime como forma de sobrevivência e revolta contra as classes dominantes.
O fanatismo religioso reuniu grupos que entoavam cantos e ladainhas, à espera de um milagreiro. Figuras
como Padre Cícero, Antônio Conselheiro e José Agenda 2008 17 Coiteiros: a polícia chama de “coiteiros” todas as pessoas que, de alguma forma, ajudam os cangaceiros. Os residentes no interior do sertão – moradores, vaqueiros e criadores, por exemplo – se inserem, também, nessa categoria.
Quem era quem no Cangaço?
O coronel: o dono da terra; representa o legítimo árbitro social, mandando em todos (do padre à força policial), com o apoio integral da máquina do Estado. Contrariar o coronel, portanto, é algo a que ninguém se atreve.
Jagunços ou capangas: aqueles assalariados que trabalham para os “coronéis” como vaqueiros, agricultores ou mesmo assassinos, defendendo com unhas e dentes os interesses do patrão, de sua família e de sua propriedade.
Volantes: para combater o Cangaço, esse novo fenômeno social, o Poder Público cria as “volantes”. Nestas forças policiais, os seus integrantes se disfarçavam de cangaceiros, tentando descobrir os seus esconderijos. Logo, ficava bem difícil saber ao certo quem era quem.
Do ponto de vista dos cangaceiros, eles eram, simplesmente, os “macacos”.
Ilustrações Flavio Colin
Maria surgiram na história como uma forma de confortar a massa de sertanejos, desolada pela dificuldade
de acesso à terra.
Assim como Virgulino Ferreira, o primeiro líder cangaceiro entrou para o Cangaço por vingança. Jesuíno
Alves de Melo Calado, o “Jesuíno Brilhante”, famoso por sua pontaria, começou a agir em 1870, após o episódio em que seu irmão levou uma surra de policiais.
“A índole do nordestino é, normalmente, humilde,pacífica e cordata. É um sujeito bonachão, alegre e divertido, embora duro e rude em suas maneiras. Mas quando resolve dizer não, o nordestino vira leão
e grita sua revolta na cara da minoria opressora”, afirma o texto da jornalista Vera Ferreira, neta de Lampião, no site oficial que mantém sobre o avô.
O último dos cangaceiros, que herdou o poder de Lampião, foi Corisco, o “Diabo louro”, interpretado
por Othon Bastos no filme Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha. Corisco e sua esposa
Dadá pertenceram ao grupo de Lampião. Corisco foi assassinado dois anos após a morte do Rei do Cangaço e também teve a cabeça decepada e exposta.
Cangaço cultural
Com exceção do pioneirismo romântico de Franklin Távora, que escreveu em 1876 O cabeleira, a literatura
brasileira chega ao tema do Cangaço com certo atraso. O romance Os cangaceiros, de José Lins do
Rego, e a peça Lampião, de Rachel de Queiroz surgem 15 anos após a emboscada de 1938. A literatura popular, por sua vez, já se dedicava ao assunto desde a virada do século: o mais antigo folheto sobre um
cangaceiro – A vida de Antônio Silvino, de Francisco das Chagas Batista – foi publicado em 1904.
A literatura de cordel, praticada, sobretudo, em Pernambuco, Paraíba e Ceará, tratava de forma fantasiosa as façanhas de Lampião, ora refletindo o medo ora a admiração da mentalidade popular.
Descompromissados, satíricos e muitas vezes sádicos 18 Julho / Dezembro 2007
“Uma vez numa cidade
Lampião apareceu
Cinco rapazes pegou
E de punhal abateu
Tirando o sangue de um deles
Um de seus cabras bebeu.
Um rapaz que estava noivo
Num esteio ele amarrou
A noiva fez ficar nua
Com ferro em brasa a marcou
E ao noivo desesperado
O criminoso castrou”.
(Combate e morte de Lampião, de
Zé Vicente)
“Logo nos primeiros tiros
Nosso povo esmoreceu
Cinco morreram na bala
E quarenta e quatro correu...”.
(O que me disse um soldado que milagrosamente escapou das unhas de Lampião, de João Martins de
Ataíde)
“O vigia foi e disse A Satanás no salão:
— Saibo vossa senhoria
Que aí chegou Lampeão
Dizendo que quer entrar
E eu vim lhe perguntar
Se dou-lhe o ingresso ou não.
— Não senhor, Satanás disse
Vá dizer que vá embora
Só me chega gente ruim
Eu ando muito caipora
Eu já estou com vontade
De botar mais da metade
Dos que tenho aqui p’ra fora”.
(Chegada do Lampião ao inferno,
José Pacheco)
“Mas quando resolve dizer não,
o nordestino vira leão e grita
sua revolta na cara da
minoria opressora”
Vera Ferreira
Histórias de Lampião
Fotos de Lampião
com as matanças dos cangaceiros, os autores de cordéis
improvisavam versos a serem distribuídos em
feiras e botequins, impressos sempre com as famosas
ilustrações de xilogravura.
No cinema, o atraso se repete. É tardiamente e também
pela via popular que o Cangaço chega às grandes
telas. Em O cangaceiro (1954), ao som de Olê, mulher
rendeira, a figura do cangaceiro alcança a crítica internacional.
Premiado no Festival de Cannes, o filme
de Lima Barreto mostra o cangaceiro como representação
de uma identidade tipicamente brasileira.
“O que se vê no filme é o cangaceiro idealizado
como um sujeito corajoso, raçudo, ético, violento,
mas com uma violência que segue uma lógica. Como
um sujeito que se afirma a partir da condição de autonomia
perante a lei, perante a polícia, perante a
sociedade”, explica Hernani Heffner, professor de cinema
da PUC-Rio e conservador da Cinemateca do
Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro.
A essa visão folclórica, Glauber Rocha acrescentou
a visão do Cangaço como resistência popular, ao dirigir,
em pleno ano de 1964, Deus e o diabo na terra do
sol. Inspirado na linguagem metafórica da literatura
de cordel, Glauber afirma seu discurso de revolução
popular através da frase repetida no filme: “O sertão
vai virar mar, o mar vai virar sertão”.
A partir da década de 1960, filmes com a temática
sobre Cangaço tornam-se um gênero comercial
do cinema nacional. Ao transportar a linguagem do
Western americano, o cinema brasileiro cria o gênero
Nordestern, de forte apelo sobre o público.
Em 1965, entretanto, com Memórias do Cangaço,
Paulo Gil Soares traça uma consideração mais real
sobre esse acontecimento. No filme, ele recupera as
únicas imagens filmadas sobre Lampião e seu bando,
feitas pelo fotógrafo Benjamin Abrahão na década
de 1930, reinserindo o cangaceiro dentro de um
circuito histórico e social.
Essa visão minuciosa sobre o mito foi retomada em
filmes mais recentes, como Baile perfumado (1997),
de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, que mostra a decadência
de Lampião pouco tempo antes de sua
morte. Sobre a permanência da atração cultural
pelo tema, o pesquisador afirma: “O cangaceiro
é um personagem que se enraíza na história, mas
que consegue se descolar dela. Por isso se transformou
em um mito. O mito pode servir para qualquer
discurso, sobretudo quando você tem valores
positivos para associar a ele. O cangaceiro é o justo,
o corajoso, quando a situação propicia a isso.
Quando não, ele simplesmente aplica a lei dele,
que é a lei do direito natural”.

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